terça-feira, 10 de abril de 2007

M.I.C.E. ou o edificio opaco...

Edifício Transparente No Porto existe um monumento que, como muitos no nosso país, não é devidamente apreciado. Não se trata de um qualquer edifício com séculos de história, mas sim um exemplo de arquitectura moderna, cujo tema não podia ser mais actual. Trata-se do Monumento à Ignorância do Contribuinte Eleitor (M.I.C.E.), também conhecido como Edifício Transparente.

Localizado na orla marítima, entre as cidades do Porto e Matosinhos, encontra-se um imponente caixote de betão e vidro que, aparentemente, não serve para nada. Construído inicialmente para entreter construtores civis, este monumento impôs-se no mundo artístico pela força da mensagem que carrega. À semelhança de Guernica de Pablo Picasso, que alerta consciências para os horrores da guerra, o M.I.C.E. alerta-nos para o desgoverno em que o nosso país caiu.

Mas falar de uma obra de volumetria considerável, cuja única função é a mesma de um burro ao sol, é omitir a sua verdadeira função. Omissão essa que suspeito, seriamente, ter origem nas mesmas pessoas que até hoje não conseguiram explicar de forma clara e inequívoca como é que aquilo apareceu ali.

Pois bem, a Estranha Mente, após horas de observação e estudo desta obra, conclui que o Edifício Transparente, cujo nome é uma antítese da sua essência, é uma homenagem:
- a todos aqueles que não votam porque acham que isso da política não é nada com eles;
- aos políticos corruptos, gananciosos, sem escrúpulos e incompetentes;
- aos construtores civis;
- ao desinteresse do contribuinte relativamente à aplicação dos dinheiros públicos;
- ao desinteresse do eleitor relativamente à competência de quem elege.

Edifício TransparenteNo fundo, este edifício homenageia-nos a todos. Simboliza o Portugal actual como nenhum outro e acima de tudo obriga-nos a reflectir, como qualquer grande obra. Nada neste país espelha tão bem o estado geral da nação como o M.I.C.E., que para além de prestar homenagem, tem também uma componente esclarecedora. Senão vejamos: está em casa em frente à televisão a assistir a um qualquer debate politico, imagine o tema da OTA no "Prós e Contras" e ouve os intervenientes a defender as suas posições com palavras como: rigor orçamental, estudos profundos, na procura do melhor, etc. Começa a ficar com dúvidas, pois dos dois lados os argumentos vão-se anulando, e pensa qual será a melhor decisão. Não pense. Lembre-se do Edifício Transparente que automaticamente o seu pensamento ficará mais claro e desanuviado. Perceberá de imediato que o que está a assistir é a uma batalha de diferentes lobbies para o tentar convencer a si. Ficará claro que, por mais papéis que lhe mostrem, você nunca saberá quem defende que interesses, mas uma coisa é certa: não é o seu.

Ao entender o M.I.C.E. perceberá que o povo já não é quem mais ordena (se é que alguma vez foi), mas que o povo não risca nada. Perceberá que lutamos para derrubar um regime que oprimia a liberdade de expressão, para o substituir por um outro que lhe permite reclamar mas que não tem livro de reclamações. Perceberá que no mundo actual só há dois tipos de classes: os que se orientam, e os que são orientados, tudo sem qualquer tipo de orientação.

Por tudo isto, apelo aos responsáveis pelas recentes obras de adaptação do Edifício Transparente a espaço comercial e de lazer que parem imediatamente! Não cometam esse erro! Na qualidade de ingénuo optimista orientado, vulgo cidadão, eu preciso desta luz. Dar uma utilidade a este espaço é destruir a sua essência! Eu reconheço que o que esta obra representa não é muito dignificante. No entanto, temos muito património que advém de períodos negros da nossa história que ainda hoje se mantêm, quer pela sua utilidade, quer por não nos deixar esquecer deles, para que possamos aprender com os nossos erros.

No futuro, quero poder mostrar esta obra às futuras gerações, referindo-me a um tempo em que este país construía por construir, decidia por decidir, falava por falar.

Quero, com a mesma intensidade que falaram da revolução de Abril, poder falar do meu tempo de total desorientação politica e social. De um tempo em que tudo fazíamos para ser melhores europeus, sem nos lembrarmos que, para isso, teríamos que ser grandes portugueses. De um tempo em que quase se perdeu o sentido de nação, em virtude de uma necessidade de afirmação europeísta. De um tempo em que os políticos estagiavam no governo nacional, para poder fazer carreira internacional. De um tempo em que as pessoas queriam mais ser Europeus de origem portuguesa do que Portugueses. Portugueses esses que originaram a Europa das grandes nações. Sim, Portugueses que originaram a globalização, que criaram uma das mais antigas nações deste continente. De um tempo em que amor à pátria tinha duas vertentes: a das bandeiras que acompanhavam a selecção nacional e a dos saudosistas do fascismo.

Mas talvez estas obras no M.I.C.E. tenham a mesma finalidade da mudança de nome de Ponte Salazar para Ponte 25 de Abril. Ou seja, a ponte não deixou de ser útil, apenas o nome desapropriado. Talvez seja um sinal de mudança… uma revolução silenciosa…

Nuno Gomes "Estranha Mente" #001