sexta-feira, 20 de julho de 2007

Os dias da cunha

A 'cunha' - ou 'factor C' - é algo que faz parte de nós e cuja definição é tão complexa que chega a ser ambígua. Faz parte da nossa cultura, das nossas vidas. É algo com que nascemos e com a qual lidamos durante toda a nossa existência, mas no fundo, é o quê?

Sabemos que pode ser considerada negativa quando é exercida sobre outros, e nos prejudica quando, por exemplo, somos preteridos por alguém que tem uma. Por outro lado, se formos nós os beneficiados, deixa de ser má para ser um motivo de orgulho. Os beneficiados por elas sentem-se privilegiados por conhecerem as pessoas certas nos lugares certos, sentem-se afortunados por pertencer a um grupo de elite que lhes permite, por exemplo, não perder tempo nas salas de espera nos centros de saúde para obter uma prescrição médica.

A 'cunha' não tem definida a sua aceitação social. No entanto, quando queremos fazer algo tão simples como esclarecer uma dúvida sobre impostos, a primeira pergunta que fazemos é: "Não conheces ninguém nas Finanças??". Estranhamente, a pergunta deveria ser a própria dúvida ou, na melhor das hipóteses "Vou às Finanças, ou ligo-lhes??" e não se conheço lá alguém ou se tenho algum amigo/conhecido de alguém que conheça.

A 'cunha' tem tamanha importância e presença que pode ser utilizada como unidade de medida da qualidade de vida: nascemos numa maternidade onde os nossos pais até têm 'cunha'. Significa automaticamente que vamos receber mais cuidados médicos e, provavelmente, o melhor quarto. Crescemos e os nossos pais colocam-nos no infantário do amigo de um deles. Quase será escusado dizer que todo o pessoal do infantário saberá o nosso nome desde o primeiro dia, bem como o dos nossos pais, sem falar no historial clínico e traços de personalidade que passarão a ser do conhecimento geral.

Quando vamos para a escola, a 'cunha' continua a marcar pontos na nossa qualidade de vida, pois a professora, que por acaso é amiga da tia, tem a constante preocupação de acompanhar a nossa evolução, nem que seja para informar a tia quando estiverem a tomar chá, isto sem falar nas notas que estão sujeitas a aprovação... Com o passar dos anos, a importância e amplitude do 'factor C' crescem como nós: serve para conseguir bons empregos, os melhores lugares e preços nos restaurantes, fazer aquela obra ou aquele negócio.

A 'cunha' é multifacetada e serve praticamente para tudo. Abre portas e resolve problemas. É um privilégio, quase uma benção, e tudo apenas porque se conhece este ou somos amigos daquele.

Mas porque é a 'cunha', sendo ela baseada em valores tão dignos como a amizade, a confiança e até a solidariedade, tratada marginalmente, como algo que não deve ser falado em público? Porque contamos com ela mas agimos como se não existisse?...

Porque a 'cunha' não é um favor que se faz a um amigo! A verdadeira essência da 'cunha' revela o que de mais primitivo e animal o ser humano tem. E nós sabemos disso. Sabemos que, quando metemos uma cunha, confessamos que não damos o nosso melhor todos os dias. Assumimos que não vemos todos da mesma maneira. Apercebemo-nos que a sociedade à qual pertencemos não passa do grupo de pessoas que conhecemos e pelas quais sentimos a obrigação de fazer mais qualquer coisa pelo simples facto de a elas estarmos ligados por qualquer tipo de sentimento. E são estas emoções que nos conseguem distrair do nosso sentido de sobrevivência. Instinto esse que nos torna irracionais e egoístas. Somos assim mesmo. Queremos o melhor para nós, todos os dias, e apenas nos ligamos aos outros porque precisamos deles de alguma forma. Somos animais como qualquer outro e tentamos sobreviver da melhor maneira. É da Natureza e da nossa natureza. E convenhamos que não é a coisa mais dignificante. É o ser humano no seu estado mais animal.

No fundo, queremos da vida o mesmo que uma hiena.

Quando metemos uma cunha, contribuímos para um mundo melhor... o nosso. É a lei da sobrevivência.

Nuno Gomes - "Estranha Mente" #002

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