O som do mar a abraçar a areia da praia ou a afagar as rochas da costa, o chilriar dos passarinhos numa manhã ensolarada de Primavera, o aroma inebriante de um imenso campo florido, o cheiro da chuva na terra, as pequenas e brilhantes gotículas de orvalho nas frágeis folhas das plantas, o primeiro e inevitável sorriso da mãe ao vislumbrar pela primeira vez o seu recém-nascido, o abraço entre dois jovens verdadeiramente apaixonados, o apertar de mãos do casal octagenário, o sabor paradisíaco da nossa sobremesa preferida, a cor da floresta reflectida no rio, a tonalidade do pôr do sol sob o céu limpo, a obra prima acabada de finalizar, o reencontro dos separados, o transpirar químico do amor puro.
O cheque acabado de ser roubado ao pensionista reformado, o bébé raptado da maternidade, o cliente enganado pelo vendedor, o violador absolvido pela justiça dos homens, a morte desonrada, o espelho partido, a voz histérica e esganiçada, a falta de cor do desmaiado, a comida estragada, as promessas em vão, os juramentos quebrados, o asqueroso cheiro do resultado da dor de barriga, a sombra do cimento citadino, o fumo dos escapes urbanos e chaminés industriais, o suor do stress e do medo, a falta de originalidade da música comercial, a mão de obra escrava, a incontornável fome, a doença exclusiva dos pobres, a prepotência dos auto-iluminados, a moda inesclarecida, a guerra físíca e psicológica, o poder do dinheiro.
Tudo isto é literatura porque tudo isto é real e tudo isto é vida. Passível de sentimentos contraditórios e reacções diversas. É assim a literatura. Mas afinal qual é a importância da literatura para mim? (ou para ele?) - interrogar-se-á o leitor destas palavras. Que lhe importa isso? - responderia o autor das mesmas. Será importante para si saber qual a importância da literatura para mim? Não sou um escritor premiado. E se o fosse? E se fosse eu um galardoado com a mais grandiosa distinção literária? Seria isso importante para si? Faria isso com que lesse mais literatura? Ou aumentaria, esse facto, a importância da literatura para si?
É muito mais fácil fazer zapping na televisão ou jogar um joguinho na playstation do que ler. Literatura claro está porque jornais desportivos e revistas cor de rosa vendem-se que nem gomas em frente ao ciclo preparatório.
Não tenho tempo. Não tenho paciência. Já me chega ter de ler as facturas que pago e as letras grandes dos contratos que assino (porque em relação às pequeninas, nem pensar em lê-las) - Dirá uma grande parte dos portugueses, provavelmente uma infeliz maioria mas como vivemos numa democracia...
Quanto a mim, ninguém me encomendou esta prosa e no entanto escrevia e fi-lo com o máximo prazer. É esta a importância da literatura para mim.
Miguel dos Santos - "III Milénio" #002
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1 comentário:
Muito Bom!
Prefilho do artigo e tema em causa... se me permitem o complemento, relembro o assunto do "Ismael" de Daniel Quinn :
"professor procura aluno"... Serão os leitores desses "queijos amontoados" (livros?, revistas? ou números?) nos hipermercados portugueses, os alunos que nunca serão encontrados ?..talvez por preguiça... Vivam as reacções!
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